ME TENHA
Um soluço sem alarde
Um beijo aqui no meio
Me guarde
Teu cheiro, tua face
Teu seio
Me acolha sem qualquer receio
Resvala.
JOEL DE-SÁ
POR UMA NOVA POESIA
Cantar, cantar, contar
Declamar
Explodir uma bomba ideológica
Esboçar uma locução expressiva
Estender as cordas vocais
Proclamar a liberdade
Inaugurar uma palavra de rebeldia
Expelir frases presas na garganta
Confundir Shakespeare e Rimbaud
Deturpar Eliot, Gogol
Atropelar Goete e Baudelaire
Desarticular uma literatura antiga
Bater a poeira do pergaminho
Desvirtuar Drumond, Cecília Meireles
Chorar sobre o esquife de Bandeira
Desdenhar de João Cabral de Melo Neto.
Semear palavra por palavra
No chão rochoso
Regar com a chuva exígua de outros verões
E esperar a colheita
No próximo período chuvoso.
DESEJO-TE
Desejote-te assim
Sem batom
Sem rouge
Sem sombreado nos olhos
Sem brincos
Sem tatuagem
Sem piercing
Sem lenço
Sem identidade
Sem palavras
Sem lágrimas
Sem preconceitos
Sem objeções
Sem blusa
Sem corpete
Sem combinações
Sem roupa
Desejo-te assim.
JOEL DE SÁ.
CONTEMPLAÇÃO
Suntuoso mosteiro, no topo da montanha, galgando tantos degraus para acessar a alma.
Sagrada quanto a veste do monge/Na célula carmelita, atrás das treliças franciscanas/ dentro dos homens. A abstração a poeira que emerge dos vales, obstruindo as serras, apagando o cinza do mar.
Dois santos trocam olhares apaixonados, dois operários a transpirar/ a lida na forja, o gosto do mel escorrendo pelos pés descalços
.
O vento não trás qualquer mensagem/ Deus não fala ao telefone, não da dicas de onde encontrá-lo.
Os santos são assassinados e vão para a vala comum/ seus ossos vão virar relíquia e cinza/ vão alimentar a fé e a desgraça dos fiéis.
O homem de semblante tácito dedilha as contas do rosário/ as décadas, os séculos, rotativos, destituídos de ampulheta e de folhinha, uma roda viva/Deus o desaponta -Vai apescar teu peixe miudo, o da rede é para Manaus: o do puçá é pra tua fome, miserável! Duas traineiras surgirão/ passarão ao largo das barrancas. Santo não é para a luxúria, por isso os pés nu pisarão os espinhos, os seixos.
Luxo é excesso, luxúria é pecado, pecado é para os miseráveis. deus fez milagre de peixe miúdo... O pirarucu não é de deus: é das traineiras que levam o peixe graúdo para Manaus. Vai aí a contemplar/ os olhos ficaram nas águas turvas e descerão junto ao peixe graúdo em direção a Manaus.
JOEL DE SÁ
DEFLORAR-TE-EI
Do íntimo das entranhas arranco a sapiência/deflorarei teu cérebro/ Comer as uvas todas do teu pomar, teu vinho derramarei/ Baco envelhecido não é mais sedutor... Cantar à meia noite uma canção intimista/verter o líquido renal em teus glúteos/Bocejar sob o madeiro recrudescente/ teus lábios trepidantes, ávidos/ inarticulados, meus olhos imbecis/ Intimidade umectante/Uma canção erótica te extrai sentidos/ Suor resvala pelo teu baixo-ventre/ Escorre pelo cóccix, pelo meu olfato olente/Plástico intumescido/ em teu desejo não ficará semente.
JOEL DE SÁ
SEJA SANTA A VACA QUE TE ALIMENTA
Mamãe vaca, santa de todos os dias, livra da desnutrição. Deus não da leite, nem cozinha, nem lava fraldas, nem da dinheiro. O garimpo da dinheiro e da a morte, a degola, a inveja, o soterramento. Deus e o Demônio estão escondidos, um a revelar o amor que extrapola e pode chegar aos limites com o ódio, o outro a demonstrar o rancor que se transforma em compaixão e arrefecimento, que acolhe a todos sem rejeitar ninguém: o demônio acolhe a de todos, indiscriminadamente. O piedoso e o solidário se encontram em qualquer esquina e numa competição deixam-se ganhar e perder almas a todos os instantes. Deus da o terremoto, o raio, o furacão, o vulcão e o medo da morte. O Demônio não da nada, apenas o temor que pode evitar de cair no próximo despenhadeiro. A prostituta não da dinheiro: tira-o. Dá apenas prazer num sexo transitório. Da também gonorreia e sífilis. Ela deu prazer, mas será descartada na próxima esquina, trocada por outra prostituta mais jovem, mas formosa, mais carinhosa. Deus não te arranjará outra, ele odeia as prostitutas. No próximo lupanar o Demônio te socorre. Ele se esconde num copo de cachaça ou na cocaina, nos assédio de uma prostituta faceira, morena jovem de seios grandes. Vais esquecer os pecados por um instante e Deus que discrimina os pecadores te excluirá do meio dos “bons”. O Demônio te acolherá solícito, sem qualquer preconceito, sem exigir conhecimento de tua vida pregressa. Deus te privará de tudo: das pepitas, das prostituas, da mamãe vaca... Te apresentará um livro grosso e um saco onde deverá depositar um décimo das pepitas que venha catar.
JOEL DE SÁ.
ALAÚDE
O som transporta ao cosmo
A aeronave transgride a alma
Espinha os tímpanos
Repele a acupuntura
Afana os címbalos
Amplia a loucura
Sara a coerência
Conspurca a virtude
Três notas de cítara
Um acorde de alaúde
Para regular as batidas
E desorganizar o tudo.
JOEL DE SÁ