Serei só eu? - I

Fecha  4-9-2009 21:02:52 Tema:  Frases y Pensamientos
Devia recordar o passado longínquo envolto em neblina ou simplesmente não me lembrar, mas consigo ver-me pequenina numa cama de criança com grades de madeira, de estar deitada a ouvir o médico no andar inferior a entrar para me ver, do meu pai a fazer sombras chinesas na parede do lado esquerdo da minha cama, de ser rechonchuda, de ter barriga, de ter deixado cair uma moeda e vê-la rolar para debaixo do rodapé que era tão baixo quanto eu, de ter adesivos nas janelas cruzados, do guarda-nocturno a bater à porta para apagarem as luzes e ver focos de luz a varrer o céu. Do meu pai estar no hospital, num a chegar para me ver. Quando o meu Pai foi internado num quarto em que a cama ficava à esquerda da porta beige como o resto dos moveis e das madeiras da janela em frente, de olhar e vê-lo deitado, tinha uma cicatriz que não fechava e estava a ser tratado, ir para casa de eléctrico, do cheiro da palhinha dos assentos, do som da campainha que o condutor accionava como pé, da alavanca preta sempre segura não mão, do fio preto que as pessoas puxavam para o eléctrico parar.
Todos os cantos da casa, móveis, de tudo me lembro. De ter sido vacinada deitada de barriga para baixo numa cadeira e levar a vacina na coxa, no colo da minha ama, do mordomo, da cozinha, das empregadas, do meu irmão mais velho quatro anos com as calças à golfe beges e o blusão de fecho eclair. Da minha irmã vestida igual a mim, da escola que ela frequentava, da praia, de andar aos ombros do meu pai… como num filme, calma e feliz passei seis anos da minha vida. Como foi bom!
Era tudo tão suave para mim, penso que teria três anos. Quando chegava a casa subia as escadas e ia meter numa gaveta a roupa com que tinha saído. Ia sozinha ao quarto de banho e um dia, já noite, cai dentro da sanita e fiquei com os pés pendurados do lado de fora, assim como a cabeça.
Não me assustava quando o meu pai tinha hemorragias nasais e a minha mãe lhe punha um molhe de chaves na parte de trás do pescoço porque dizia ela que fazia parar a hemorragia. De madrugada, saíamos para ir a Espanha, a casa do meu avô. O papá ficava do lado de cá. Nessa altura não compreendia o porquê. E as duas, eu e a minha mãe, íamos de táxi até …. Lembro-me de ter chegado uma vez e o meu primo vir ao fundo das escadas com uma lâmpada, que hoje sei que é querosene, visto que não havia luz, a partir das 22horas.
Ainda hoje sinto o cheiro! Sei que foram tempos tristes em Espanha, mas só depois de começar a entender. O meu primo levava-me ao colo até ao primeiro andar, fazia uma festa à minha mãe e lembro-me de ver o meu avô na cama, que era alta. E hoje tenho orgulho de lhe ter arranjado as almofadas; sei que eram brancas com lençóis com grandes rendas. Hoje posso dizer que conheci o meu avô. Talvez estivesse doente, mas o sorriso de ternura que me deu não esqueço.
Na casa do meu avô havia uma varanda e a minha prima Merceditas, tinha os pratinhos de brincar com um ovo frito….adorava-os! Havia também um quintal e um poço para tirar água. E uma tarde, que andava pelo quintal, na varanda estava a minha mãe, as minhas tias e penso que a avó, vestida de preto, e claro, a rirem-se de mim. Penso que por causa de uma galinha. Muitas coisas me lembro mais.

Sessenta e cinco anos passados. Sinto que não vivi, que não tive capacidade para aproveitar a dádiva da via. Culpa minha ou não. A partir dos seis anos começou a época de descobrir que embora o céu fosse azul, e da galeria da minha casa visse o mar, que tudo era calmo, a casa não era a mesma. O sítio era outro e tudo se modificou. Tínhamos mudado da Foz para uma quinta lindíssima com um palacete imponente, com jardins, um cavalo com o respectivo carro, um galinheiro enorme, e tanta coisa mais. Senti-me uma exploradora, tudo vi. Em tudo mexi e remexi. Sachei, reguei, tirei leite das vacas, cacei principalmente ratazanas, subi às árvores, arranjei um monte de gatos, uma cadelinha chamada Coimbra e tudo o que podia experimentar fazia.
Hoje sei que me criei sozinha: selvagem e feliz.
Nunca fui aceite pela minha mãe nem pela minha irmã. O porquê jamais o saberei e nem quero saber, não vale a pena.
Aos oito anos fui para o colégio. O meu pai estacionou ao portão e disse: “entra e vai”, e eu fui!? Atravessei o pátio com dois livros debaixo do braço, sem saber nem conhecer ninguém. Tive sorte porque a telefonista me conhecia. Vivia perto da quinta. Veio ter comigo e perguntou-me: “a menina, que está aqui a fazer?”; a minha resposta”o meu pai disse para eu entrar”; e ela perguntou” e o pai onde está?” – “já foi embora”.
Pegou-me na mão, levou-me junto da superiora que já sabia que eu ia e assim começou o período escolar.
Na quinta lindíssima, no palacete imponente o ambiente era triste. Só discussões entre os meus pais, coisas horríveis que eu ouvia, desarmonia constante. Então pedi ao meu pai para ficar interna. E assim foi. Que belos tempos entre risos e choros, sentia-me tão bem…! Era a minha família. Tinha uma alegria muito grande dentro de mim e auto-defesa para não pensar no que me entristecia. Fiz de tudo, era um vendaval, mas sem querer. Era a vida dentro de mim que era maior do que eu! Amiga de toda a gente, sempre fiel às companheiras. Quando me deixavam aquele pacotes enormes do bolacha, de manteiga, os pastéis, as cerejas…era para todas. Hoje toda se lembram de mim, e bem! A irmã má que tive obrigou o meu pai a tirar-me do colégio. Precisava de companhia para andar com o namorado, e assim me tirou o futuro.

Mas mesmo assim fui em frente, à procura. Hoje sei que carinho e ternura, em certa medida, encontrei porque tenho uma filha. Mas o amor, o amante, a mão amiga que acaricia, que junta com a minha passeia apertada na praia ao pôr do sol…nunca, nuca encontrei.
É certo, casei. Mas foi só isso. Agora é tarde, não vivi porque para viver não basta sermos bonitos, jovens, ricos com esperança de que as coisas podem melhorar. Aquela criança, menina e mulher nunca foi feliz. Tanto tinha para dar. Como gostaria de saber escrever e passar para o papel tudo que aqui falta dizer. Não posso! Porque mesmo tendo sido tão esquecida e rebaixada, respeito a ignorância de quem nasceu vazio por dentro, como o pai da minha filha.
Custa muito envelhecer, dizem. Isso nunca me afectou. Olho pouco para o espelho, e por dentro sou criança - jovem e mulher, sou a mesma. Quando me deito ainda sonho, como não me lembro de o ter feito com dezoito anos. Dentro de mim há muita mágoa, muita tristeza. Mas não sei porque, sinto-me cheia de esperança enganosa, que um dia vou sentir que sou amada com muita ternura.
Serei normal? Serei igual às outras pessoas? Será, que como disse um médico espanhol, tenho a sensibilidade fora do normal, a capacidade mental de sentir nos outros aquilo que eles mesmos não sentem?

Hoje, noutra casa, não é o palacete da minha juventude, mas uma bonita casa, somos cinco. Além da filha, da neta, do genro, de mim tenho o homem com quem casei que tenho que aceitar. O meu pensamento e eu própria não pisamos firmes o chão. Ando sempre a vagar num limbo que não consigo explicar com saudades de alguém que me fez feliz, que conseguiu por pouco tempo, é certo, dar-me a sensação de não estar a mais, de ser importante, respeitada…oh! Foi tão bom! Hoje gostaria ao menos de ouvir a sua voz. Tenho a certeza que a seiva da vida me inundaria, que abrandaria a dor do meu coração tão dorido. Onde estás? Onde andas? Talvez nem se lembre de mim…



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